quarta-feira, 12 de setembro de 2012

ENTENDENDO O SISTEMA DE FREIOS E CONTRAPESOS (CHECKS AND BALANCES): UMA BUSCA PELO IDEAL DE DEMOCRACIA




            A separação horizontal de poderes é o princípio básico de organização do Estado na maioria dos países do mundo, ou pelo menos naqueles verdadeiramente democráticos. Montesquieu, referência primeira sobre o assunto, procurou em sua clássica obra “O Espírito das Leis” evitar o abuso de poder e garantir a liberdade dos indivíduos.
            A Teoria de Montesquieu teve o seu apogeu na mesma época da formação do Estado liberal. O sistema liberal regia-se pela livre iniciativa e pela menor interferência possível do Estado nas liberdades individuais, como prescrevia Stuart Mill. A doutrina pregada por Montesquieu é impregnada deste espírito libertário, tanto que as mais severas críticas a ela são por não haver pormenorizado seus próprios instrumentos de concretização.
             É bem verdade, todavia, que foi John Locke o primeiro a invocar a separação horizontal de poderes nos moldes do liberalismo clássico. De fato, Locke, que dividiu o poder em Legislativo, Executivo e Federativo, pode ser considerado o precursor de Montesquieu, pois que é bastante dito que o último elaborou a sua célebre doutrina baseando-se nos ensinamentos do primeiro e por intermédio de um imperfeito entendimento acerca do sistema político inglês do Séc. XVIII, conforme prescrevia Hood Philips1.
            Montesquieu, no Livro XI da referida obra, inscreveu no seu Capítulo VI, denominado Da Constituição da Inglaterra, as três espécies de poder: o legislativo, o executivo (“O executivo das coisas que dependem do direito das gentes”) e o judiciário (“O executivo das que dependem do direito civil”). Assim sendo, “pelo primeiro, o príncipe ou o magistrado faz leis para um certo tempo ou para sempre e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as querelas dos indivíduos. Chamaremos este último o poder de julgar e o outro, simplesmente o poder executivo do Estado.”2
            Portanto, o “remédio supremo”3 aos desmandos seria a separação do poderes em legislativo, executivo das coisas que dependem do direito das gentes (executivo), executivo das coisas que dependem do direito civil (judiciário), pois na concepção do pai da teoria todos aqueles que detinham o poder nas mãos tendiam a dele abusar. Um executivo aliado ao legislativo expediria leis tirânicas e executá-las-ia da mesma forma; um judiciário associado ao legislativo seria um superpoder detentor dos meios legais e coativos sobre a vida a liberdade dos indivíduos; um executivo atrelado ao judiciário seria uma força opressora poderosíssima. Assim, a separação era fundamental e indispensável.
            Esta divisão funcional de competências ocorre exatamente para que não se possa abusar do poder. O Professor Gabriel Negretto esclarece que “el modelo de frenos e contrapesos se propuso precisamente como remedio para evitar en los hechos la usurpación de funciones por parte de una legislatura potencialmente invasora.”4 Em virtude da imperiosa necessidade de o poder frear o poder, a separação de poderes promove um verdadeiro sistema de checks and balances (sistema de freios e contrapesos), de tal modo que ninguém seria constrangido a fazer coisas que a lei não obrigasse e a não fazer as que a lei permitisse.
            Nesse termos, Manuel Garcia-Pelayo, recorrendo às palavras de Proudhon, presta a seguinte lição:
        Organizar en cada Estado federado el gobierno según la ley de separación de órganos;  quiero decir: separar en el poder todo lo que puede separarse, definir (esto es, delimitar) tolo lo que puede definirse, distribuir entre órganos y funcionarios diferentes, rodeando a la administración pública de todas las condiciones de publicidad e intervención.5

            Nesse sentido, parafraseando Montesquieu, tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos princípios, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos.6
            Com isso, afirma Pierre Albertini, o princípio da separação de poderes tornou-se profundamente ligado à concepção tridimensional da mesma, passando-se tal tridimensionalidade a inspirar os modelos constitucionais cônscios das liberdades fundamentais da pessoa humana7. Traduz, pois, o agenciamento dos poderes independentes entre si, que devem atuar apenas sobre uma parte específica das competências estabelecidas, ficando as demais efetivamente vedadas.
            É verdade, pois, que o sistema de Montesquieu não evitaria os futuros conflitos entre os Três Poderes, com a resultante inércia da ação estatal. Contudo, para a maioria dos doutrinadores, é igualmente correto que, numa visão mais própria do liberalismo, isso não seria de todo ruim, haja vista que o governo conquanto estiver paralisado, está impossibilitado de intervir na livre conduta individual.
            Benjamin Constant, temeroso da paralisia da ação governamental, buscou ao seu modo resolver o problema do conflito entre Poderes. Para isso, sugeriu a formação de um quarto poder, denominado de neutro ou moderador, que resolveria o problema recolocando o Estado em atividade normal. Benjamin Constant leciona:
        O poder real (refiro-me ao do chefe de Estado, qualquer que seja seu título) é um poder neutro e dos ministros é um poder ativo.
        ...
        O verdadeiro interesse deste poder é evitar que um dos poderes destrua o outro, e permitir que todos se apoiem, se compreendam e que atinem mutuamente.8

            Carl Schmitt também abarcou a teoria política do poder neutral (pouvoir neutre), que seria uma teoria que pertence essencialmente ao grupo de teoria constitucionais do Estado Cívico de Direito, se referindo ao catálogo típico de prerrogativas e atribuições do chefe do Estado (Monarca ou Presidente) imaginadas todas elas como elementos e possibilidades de intervenção semelhante ao pouvoir neutre9.
            Pode-se observar, com isso, que a questão do Checks and Balances não está adstrita tão somente ao controle por intermédio de mecanismos judiciais, mas sobretudo por prerrogativas dos outros poderes. Isso será melhor evidenciado na análise das casuísticas. Um exemplo, dado por Schmitt, é o ato do presidente como arbitragem neutral e mediação de conflitos políticos.
            Corroboram Carl Schmitt10 e Benjamin Constant que a fórmula de um poder neutral, imaginado inicialmente de modo exclusivo para o Chefe do Estado, pode ampliar-se ao âmbito geral da teoria política e aplicar-se ao Estado em seu conjunto.
            Enfim, o princípio dos poderes harmônicos e independentes acabou por dar origem ao conhecido sistema de “freios e contrapesos”, pelo qual os atos gerais, praticados exclusivamente pelo poder legislativo, consistentes na emissão de regras gerais e abstratas, limita o poder executivo, que só pode agir mediantes atos especiais, decorrentes da norma geral. Para coibir a exorbitância de qualquer dos poderes de seus limites e competências, dá-se a ação fiscalizadora do poder judiciário.
            Portanto, a separação de poderes e o Checks and Balances seriam perfeitamente compatível com o Estado democrático, limitando-se o poder, mas garantindo-se a plena liberdade política dos indivíduos e do direito das minorias. Possibilita, de igual forma, a formação do Estado de Direito, na medida em que ele previne o abuso governamental submetendo-se governantes e governados ao rule of law, donde ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de prévia determinação legal, conforme prescrevia o professor Augusto Zimmermann11.

Referência Bibliográfica

1.  Para Hood, “the doctrine of ‘separation of power1 as usually understood is derived from Montesquieu, whose elaboration of it was based on a study of Locke’s writings and an imperfect understanding of the eighteenth-century English Constitution.” in PHILIPS, Hood. Constitutional and administrative law. London: Sweet & Maxwell, 7ª ed., 1987, p. 13.
2. MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la Brède et de. O Espírito das Leis. Tradução de Fernando Henrique Cardoso. Brasília: Universidade de Brasília, 1995, p. 211.
3. HAMILTON, Alexander; JAY, John e MADISON, James. O Federalista. 2ª Edição. Campinas: Russell Editores, 2005, p. 72.
4. NEGRETTO, Gabriel L. Hacia Una Nueva Visión de la Separación de Poderes en América Latina. México, Ciudad del México: Siglo Veintiuno Editores, 2002, p. 301.
5. GARCIA-PELAYO, Manuel. Derecho Constitucional Comparado. 7ª Ed. Madrid: Manuales de la R evista Occidente, 1964, p. 217.
6.  MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la Brède et de. Op. Cit, p. 202.
7. ALBERTINI, Pierre. La Déclaration des Droits de I’Homme et du Ciloyen de 1789. Paris: Economica, 1993, p. 336.
8. CONSTANT, Benjamim. Princípios Políticos Constitucionais – Princípios Políticos Aplicáveis a todos os Governos Representativos e Particularmente à Constituição Atual da França (1914). Tradução de Maria do Céu Carvalho. Rio de Janeiro: Líber Juris. 1989, p. 74.
9.  SCHMITT, Carl. La Defesa de la Constitución. Barcelona: Editorial Labor, 1931, p. 161.
10. “La formula de un ‘poder neutral’, imaginado inicialmente de modo exclusive para el jefe del Estado (respecto del ual posee una importancia específica en el Derecho constitucional), puede ampliarse al ámbito general de la teoría política y apliarse al Estado en su conjunto.”  in SCHMITT, Carl. Op. Cit, p. 173.
11. ZIMMERMANN, Augusto. Teoria Geral do Federalismo Democrático. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 85/86.

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