A
separação horizontal de poderes é o princípio básico de organização do Estado
na maioria dos países do mundo, ou pelo menos naqueles verdadeiramente
democráticos. Montesquieu, referência primeira sobre o assunto, procurou em sua
clássica obra “O Espírito das Leis”
evitar o abuso de poder e garantir a liberdade dos indivíduos.
A
Teoria de Montesquieu teve o seu apogeu na mesma época da formação do Estado
liberal. O sistema liberal regia-se pela livre iniciativa e pela menor
interferência possível do Estado nas liberdades individuais, como prescrevia
Stuart Mill. A doutrina pregada por Montesquieu é impregnada deste espírito
libertário, tanto que as mais severas críticas a ela são por não haver
pormenorizado seus próprios instrumentos de concretização.
É bem verdade, todavia, que foi John Locke o
primeiro a invocar a separação horizontal de poderes nos moldes do liberalismo
clássico. De fato, Locke, que dividiu o poder em Legislativo, Executivo e
Federativo, pode ser considerado o precursor de Montesquieu, pois que é
bastante dito que o último elaborou a sua célebre doutrina baseando-se nos
ensinamentos do primeiro e por intermédio de um imperfeito entendimento acerca
do sistema político inglês do Séc. XVIII, conforme prescrevia Hood Philips1.
Montesquieu,
no Livro XI da referida obra, inscreveu no seu Capítulo VI, denominado Da Constituição da Inglaterra, as três
espécies de poder: o legislativo, o executivo (“O executivo das coisas que dependem do direito das gentes”) e o
judiciário (“O executivo das que dependem
do direito civil”). Assim sendo, “pelo
primeiro, o príncipe ou o magistrado faz leis para um certo tempo ou para
sempre e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, faz a paz ou a
guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece segurança, previne as invasões.
Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as querelas dos indivíduos. Chamaremos
este último o poder de julgar e o outro, simplesmente o poder executivo do
Estado.”2
Portanto,
o “remédio supremo”3 aos
desmandos seria a separação do poderes em legislativo, executivo das coisas que
dependem do direito das gentes (executivo), executivo das coisas que dependem
do direito civil (judiciário), pois na concepção do pai da teoria todos aqueles
que detinham o poder nas mãos tendiam a dele abusar. Um executivo aliado ao
legislativo expediria leis tirânicas e executá-las-ia da mesma forma; um
judiciário associado ao legislativo seria um superpoder detentor dos meios
legais e coativos sobre a vida a liberdade dos indivíduos; um executivo
atrelado ao judiciário seria uma força opressora poderosíssima. Assim, a
separação era fundamental e indispensável.
Esta
divisão funcional de competências ocorre exatamente para que não se possa
abusar do poder. O
Professor Gabriel Negretto esclarece que “el
modelo de frenos e contrapesos se propuso precisamente como remedio para evitar
en los hechos la usurpación de funciones por parte de una legislatura potencialmente
invasora.”4 Em virtude da imperiosa necessidade de o poder frear o poder, a separação de
poderes promove um verdadeiro sistema de checks
and balances (sistema de freios e contrapesos), de tal modo que ninguém
seria constrangido a fazer coisas que a lei não obrigasse e a não fazer as que
a lei permitisse.
Nesse
termos, Manuel Garcia-Pelayo, recorrendo às palavras de Proudhon, presta a
seguinte lição:
Organizar en cada Estado
federado el gobierno según la ley de separación de órganos; quiero decir: separar en el poder todo lo que
puede separarse, definir (esto es, delimitar) tolo lo que puede definirse,
distribuir entre órganos y funcionarios diferentes, rodeando a la
administración pública de todas las condiciones de publicidad e intervención.5
Nesse
sentido, parafraseando Montesquieu, tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o
mesmo corpo dos princípios, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três
poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os
crimes ou as divergências dos indivíduos.6
Com
isso, afirma Pierre Albertini, o princípio da separação de poderes tornou-se
profundamente ligado à concepção tridimensional da mesma, passando-se tal
tridimensionalidade a inspirar os modelos constitucionais cônscios das liberdades
fundamentais da pessoa humana7. Traduz, pois, o agenciamento dos
poderes independentes entre si, que devem atuar apenas sobre uma parte
específica das competências estabelecidas, ficando as demais efetivamente
vedadas.
É
verdade, pois, que o sistema de Montesquieu não evitaria os futuros conflitos
entre os Três Poderes, com a resultante inércia da ação estatal. Contudo, para
a maioria dos doutrinadores, é igualmente correto que, numa visão mais própria
do liberalismo, isso não seria de todo ruim, haja vista que o governo conquanto
estiver paralisado, está impossibilitado de intervir na livre conduta
individual.
Benjamin
Constant, temeroso da paralisia da ação governamental, buscou ao seu modo
resolver o problema do conflito entre Poderes. Para isso, sugeriu a formação de
um quarto poder, denominado de neutro ou moderador, que resolveria o problema
recolocando o Estado em atividade normal. Benjamin Constant leciona:
O
poder real (refiro-me ao do chefe de Estado, qualquer que seja seu título) é um
poder neutro e dos ministros é um poder ativo.
...
O
verdadeiro interesse deste poder é evitar que um dos poderes destrua o outro, e
permitir que todos se apoiem, se compreendam e que atinem mutuamente.8
Carl
Schmitt também abarcou a teoria política do poder neutral (pouvoir neutre), que seria uma teoria que pertence essencialmente
ao grupo de teoria constitucionais do Estado Cívico de Direito, se referindo ao
catálogo típico de prerrogativas e atribuições do chefe do Estado (Monarca ou
Presidente) imaginadas todas elas como elementos e possibilidades de
intervenção semelhante ao pouvoir neutre9.
Pode-se
observar, com isso, que a questão do Checks
and Balances não está adstrita tão somente ao controle por intermédio de
mecanismos judiciais, mas sobretudo por prerrogativas dos outros poderes. Isso
será melhor evidenciado na análise das casuísticas. Um exemplo, dado por
Schmitt, é o ato do presidente como arbitragem neutral e mediação de conflitos
políticos.
Corroboram
Carl Schmitt10 e Benjamin Constant que a fórmula de um poder
neutral, imaginado inicialmente de modo exclusivo para o Chefe do Estado, pode
ampliar-se ao âmbito geral da teoria política e aplicar-se ao Estado em seu
conjunto.
Enfim,
o princípio dos poderes harmônicos e independentes acabou por dar origem ao
conhecido sistema de “freios e contrapesos”, pelo qual os atos gerais,
praticados exclusivamente pelo poder legislativo, consistentes na emissão de
regras gerais e abstratas, limita o poder executivo, que só pode agir mediantes
atos especiais, decorrentes da norma geral. Para coibir a exorbitância de
qualquer dos poderes de seus limites e competências, dá-se a ação fiscalizadora
do poder judiciário.
Portanto,
a separação de poderes e o Checks and
Balances seriam perfeitamente compatível com o Estado democrático,
limitando-se o poder, mas garantindo-se a plena liberdade política dos
indivíduos e do direito das minorias. Possibilita, de igual forma, a formação
do Estado de Direito, na medida em que ele previne o abuso governamental
submetendo-se governantes e governados ao rule
of law, donde ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de prévia determinação legal, conforme prescrevia o professor
Augusto Zimmermann11.
Referência
Bibliográfica
1. Para Hood, “the doctrine of ‘separation of power1 as usually understood is derived
from Montesquieu, whose elaboration of it was based on a study of Locke’s
writings and an imperfect understanding of the eighteenth-century English
Constitution.” in PHILIPS, Hood. Constitutional and administrative law.
London: Sweet & Maxwell, 7ª ed., 1987, p. 13.
2. MONTESQUIEU, Charles
Louis de Secondat, baron de la
Brède et de. O Espírito das Leis. Tradução de Fernando Henrique Cardoso. Brasília: Universidade de
Brasília, 1995, p. 211.
3. HAMILTON, Alexander; JAY,
John e MADISON, James. O Federalista. 2ª Edição. Campinas: Russell Editores, 2005, p. 72.
4. NEGRETTO, Gabriel L. Hacia Una Nueva Visión de la Separación de Poderes
en América Latina. México, Ciudad del México: Siglo Veintiuno Editores,
2002, p. 301.
5. GARCIA-PELAYO, Manuel. Derecho Constitucional Comparado. 7ª Ed.
Madrid: Manuales de la R
evista Occidente, 1964, p. 217.
6. MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron
de la Brède et
de. Op. Cit, p. 202.
7. ALBERTINI, Pierre. La
Déclaration des
Droits de I’Homme et du Ciloyen de 1789. Paris: Economica, 1993, p. 336.
8. CONSTANT, Benjamim. Princípios
Políticos Constitucionais – Princípios Políticos Aplicáveis a todos os Governos
Representativos e Particularmente à Constituição Atual da França (1914). Tradução de Maria do Céu Carvalho. Rio de Janeiro:
Líber Juris. 1989, p. 74.
9. SCHMITT, Carl. La Defesa de la
Constitución. Barcelona : Editorial Labor, 1931, p. 161.
10. “La formula de un ‘poder neutral’, imaginado inicialmente de modo
exclusive para el jefe del Estado (respecto del ual posee una importancia
específica en el Derecho constitucional), puede ampliarse al ámbito general de
la teoría política y apliarse al Estado en su conjunto.” in SCHMITT, Carl. Op. Cit, p. 173.
11. ZIMMERMANN, Augusto. Teoria
Geral do Federalismo Democrático. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2005, p. 85/86.
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