terça-feira, 19 de junho de 2012

SOBRE O DIREITO DE DISCORDAR

            Há aproximadamente quatro séculos atrás, o filósofo iluminista francês Voltaire (1694-1778) imortalizou a célebre frase: “Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las”. A referida frase enceta aquilo que ficou conhecido como “O Direito de Discordar”, que não se constitui como um mero exercício de oposição cega e acrítica, mas a concepção de um direito existente em face das divergências do estado das coisas diante da visão excludente e, muitas vezes, do senso comum.
            Por outro lado, discordar não se constitui necessariamente um direito, haja vista que qualquer pessoa tem a faculdade de dissentir ou ter opinião oposta a da outra. No entanto, discordar, como um direito do advogado, se exprime como um apostolado do estado democrático de direito e de defesa das liberdades.
            O direito de discordar, como objeto da dialética, se constitui como uma legítima oposição em busca de uma síntese ou resultado que seja racional e juridicamente aceitável. À luz desta verdade, diante das recentes discussões acerca da chamada união homoafetiva, por exemplo, é legítimo o direito que uma pessoa tem de discordar do conceito que a união entre duas pessoas do mesmo sexo seja considerada família, sobretudo se este direito de discordar esteja calcado em uma orientação religiosa que esta pessoa possua. Da mesma forma, se afigura igualmente legítimo o direito que outra pessoa tenha de discordar que o conceito de família esteja adstrito à união heterossexual.
            É importante evidenciar que uma orientação religiosa não pode se utilizar do seu direito de discordar como instrumento de fomento de radicalismo, preconceito e discriminação. No mesmo sentido, aquele que defende a união homoafetiva não pode se utilizar do seu direito de discordar como mecanismo de chacota ou escárnio da orientação religiosa de outrem.
            O exemplo acima evidencia que, independentemente do entendimento ou opinião pessoal, é absolutamente legítimo o direito que uma pessoa tenha de não concordar e de lutar para que não seja impedida de expressar suas convicções, devendo sempre manter o respeito das diferenças e a coexistência com entendimentos diversos.
            Em outro exemplo no passado recente, o ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, agitou discussões acirradas sobre a legalização da maconha. As discussões fomentaram algumas marchas nas principais cidades do Brasil, mas foram reprimidas por meio de decisões judiciais e atitude volitiva de autoridades policiais sob o argumento de que tais marchas seriam consideradas como apologia ao uso de drogas e, por conseguinte, apologia ao crime.  
            Com a polêmica instaurada, surgiu uma questão muito mais relevante do que a relativa ao fato de a marcha ter ou não a capacidade de estimular o consumo de drogas. Trata-se da discussão sobre os limites à liberdade de expressão e de manifestação do pensamento. Quais seriam os limites aceitáveis e compatíveis com a Constituição Federal de 1988? Que limites poderiam ser legal e legitimamente impostos à liberdade de expressão e de manifestação do pensamento?
            Tais questionamentos foram objeto de importante decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, por meio de uma ação manejada pela Procuradoria-Geral da República, garantiu o direito de cidadãos realizarem manifestações pela descriminalização de drogas, sem que isso seja considerado apologia ao crime. Não se trata de uma decisão que reconhece a descriminalização da maconha, mas que garante o direito do cidadão de discutir ou manifestar-se publicamente pela legalização. Em outras palavras, o Supremo Tribunal Federal defendeu exatamente aquilo que se afigura como apostolado do exercício da advocacia, qual seja: o direito de discordar.
            O direito de discordar é algo muito mais legítimo e comum do que se possa imaginar, exercido principalmente por meio de discussões judiciais em torno de questões mais comezinhas. No entanto, mesmo fora do âmbito judicial, é factível e perfeitamente legítimo o direito de discordar sobre várias questões nevrálgicas, tais como: o voto obrigatório; as políticas de quotas; as cartilhas educacionais emanadas dos órgãos públicos; a distribuição de receitas no Brasil; entre outras questões. É possível concordar com essas questões? Não? Tudo bem! Como Voltaire, o importante é defender o direito de pensar diferente, ou seja, é imprescindível que seja respeitado o direito de discordar.
            Pelo direito de discordar, podemos nos credenciar como interlocutores do chamado estado democrático de direito e do exercício das liberdades. É imbuído desse sentimento que esse blog está afeto, sendo paráfrase do subtítulo da obra “O Direito do Advogado em 3D: um Sacerdócio”, da lavra deste escriba e que deu origem ao opúsculo virtual.
             Boa viagem e não deixem de discordar!

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